Foi, creio eu, por volta dos inícios do Século XXI que a grande descoberta foi feita. O que foi a grande descoberta, perguntais vós? Eu explico. Com poucos pormenores, no entanto, que não quero aborrecer ninguém. A coisa tem que ver com células estaminais e nano-tecnologia. Vamos por partes. As células estaminais são as células embrionárias humanas que, precisamente por serem aquelas primeiras que vão dar lugar todas as outras, têm dentro de si a capacidade de se tornar em todas as outras. Ora, a grande descoberta consistiu em desenvolvermos tecnologia que permitiu que todos os dias de manhã, ingerida uma particular dose de células estaminais, os nossos órgãos fossem regenerados. Aí é que entrou também a nano-tecnologia. Nano, uma unidade de medida que se define como uma unidade dividida por um bilião, com o dealbar da física quântica e do microscópio de força atómica, passou a ser uma unidade banal no final do século XX. 

Utilizando óxidos de metal, com uma elaboração rapidamente estandardizada de nano-tubos, foi possível através da atribuição de cargas positivas e negativas, dar ordens a pequenos nano-robôs de carga. O que carregavam eles? Exactamente: células estaminais. Assim, porque o nano é uma unidade muito pequenina, não foi preciso muito material para fazer triliões de triliões de triliões de nano-robôs. A produção em massa permitida pelo mercado global fez com que toda a gente pudesse ingerir os nano-robôs. E o mercado capitalista concorrencial fez com que, à medida que se investia na produção, os preços baixassem gradualmente, isto até ao ponto em que toda, ou praticamente toda, a população humana e não humana da Terra tivesse a possibilidade de ingerir os nano-robôs.

Foi uma questão de tempo até que se descobrisse como aliar o conhecimento genético de clonagem com a auto-produção de células estaminais dentro do próprio corpo. Assim, alguns anos depois estabeleceram-se nos pâncreas humanos nano-centros de produção de células estaminais que os milhões de nano-robôs transportavam regularmente para todos os órgãos do corpo. Foi um sucesso. A pouco e pouco, devagar devagarinho, o processo de envelhecimento foi revertido. E a Humanidade rejubilou numa festa tremenda com a chegada da imortalidade.

A tragédia, no entanto, não abandonou de imediato a condição humana. Afinal, o processo nano-estaminal de reversão etária apenas funciona quando o corpo está em condição normal. Acidentes de automóvel, ferimentos de guerra e demais vicissitudes que destruam o corpo para lá do, depois apelidado, limite de capacidade regeneradora causavam a morte, uma coisa que ficou devidamente comprovada logo nessa altura de festa onde algumas centenas de pessoas acharam que a imortalidade lhes permitia atirarem-se prédios, pontes e penhascos. Não permitia - pelo menos por enquanto.

A chegada da imortalidade teve consequências inesperadas. Paradoxalmente, os casos de agorafobia subiram em massa: onde antes nas actividades mundanas se arriscavam umas dezenas de anos potenciais a atravessar a rua passaram a arriscar-se centenas ou milhares de anos. Tanto potencial não poderia ser colocado em causa por um semáforo mal regulado ou um automobilista menos talentoso. Na dúvida, compreende-se, para muitos mais valia não sair de casa. 

Outro problema foi a criminalidade. Cumprir vinte e cinco anos de cadeia para garantir uns milhões de cripto-dólares para as centenas de anos que se seguiriam pareceu ser um excelente negócio para muita gente que resolveu investir no negócio. Foram anos curiosos, houve muita discussão e muito debate, mas, a pouco e pouco, a coisa foi ao sítio. Para isso ajudou muito o avanço no campo da realidade virtual: desenvolveram-se plataformas digitais que, através de tecnologia laser, se comportavam exactamente como os seres humanos fechados em câmaras de hiper-realidade neuro-digital. A partir daí o mundo reproduziu-se fielmente no ciberespaço sem os riscos que o mundo real implicava para os humanos. Foi complicado legislar sobre o que se poderia fazer e não se poderia fazer no mundo virtual mas, após uma série de referendos populares, decidiu-se, e bem, que a legislação deste novo mundo deveria funcionar de forma análoga à do mundo real.

As vantagens foram muitas: criaram-se tribunais, governos, polícias virtuais; a Google fez um upload 4D para que o planeta inteiro ali fosse perfeitamente reproduzido e as pessoas, de livre vontade, contribuíam através dos seus smartphones com os interiores das suas próprias casas, roupeiros e gavetas.

E de repente passou a haver uma realidade onde além de imortais os seres humanos se tornaram indestrutíveis. Enfim, o paraíso. Livres do medo, da morte e da fragilidade.

Houve, no entanto, admita-se, alguns problemas com hackers, e também com os "reais", aqueles que recusavam obstinadamente, na maior parte das vezes por motivações primitivas religiosas, a viver no digital - na Terra 2 como foi chamada - que, muitas vezes, se aproveitavam da imersão no digital da maioria da população para lhes roubar as casas reais.

A questão resolveu-se: com a tecnologia de reconhecimento facial chinesa, os drones americanos e o intrincado sistema de locomoção automática da Uber, os Estados uniram-se numa única entidade global na fiscalização milímetro a milímetro do mundo real. Nada lhes escapava. E graças a essa apertada vigilância os humanos puderam, finalmente, ser verdadeiramente livres para gozar as suas vidas virtuais. 

A melhor e mais sábia lei estava, no entanto, para chegar. Ainda hoje me pergunto como permitimos durante tanto tempo que "reais" andassem a causar problemas pelo planeta colocando em causa as vidas de animais e plantas. A lei de inviolabilidade do mundo real veio, pois, acabar com o regabofe em dois mil e noventa e sete: a partir dessa data foi compulsória a manifestação de vida humana apenas no digital. A imortalidade era garantida pelo Estado, aliás como se poderia recusar tal coisa, mais a mais com o fornecimento gratuito das algálias e canalizações sanitárias que ligavam os corpos reais ao sistema de esgotos, bem como a entubagem digestiva que permitiu uma alimentação no mundo real saudável e vegan para toda a gente no planeta, mesmo a quem na Terra 2 se empanturrasse de bifes a cada hora. Enfim, a felicidade eterna, o paraíso prometido!

Os anos passaram e tudo correu bem até à grave crise do final do século XXIII, a crise existencialista como veio a ficar conhecida. A verdade é que duas centenas de anos sem guerras, sem mortes, de fausto e divino divertimento geral, duzentos anos de imortalidade indestrutível, resultaram num efeito que não estava previsto pelos modelos de gestão da Terra 2: um aborrecimento generalizado. 

Foi um grande choque quando se percebeu que há um limite para a quantidade de Sexta-Feiras à noite que se aguenta a dançar os grandes êxitos da década de oitenta do Século XX. Nem o sexo desenfreado ou as drogas digitais administradas informaticamente através de códigos informáticos interpretados pelo cérebro real ajudaram. Pessoas anteriormente bem ajustadas e felizes uns quantos anos após a conquista da sua imortalidade andavam nuas a chorar pelas ruas enquanto perguntavam: o que é que isto tudo significa? Por que razão estamos vivos? E até quando temos que aguentar isto? O paraíso de uns era o inferno dos outros, ou pelo menos assim parecia.

Era deprimente, uma vergonha. Então andámos nós, os humanos, ocupados durante milénios a evoluir para criar o paraíso de Adão e Eva, um paraíso de abundância e imortalidade, apenas para que andassem as pessoas a chorar pela dádiva que lhes tinha sido oferecida? Mas que raio de gente era aquela? Enfim, foi a eutanásia que resolveu a coisa. Primeiro não se queria implementar a política porque a perda de corpos reais e dos seus respectivos fluídos, quer de entrada quer de saída, representaria uma perturbação na estabilidade bio-química do agrupamento inteiro que sustentava o eco-sistema de humanos imortais no mundo real. Foi aí que a genialidade humana mais uma vez veio em nosso auxílio: a solução foi uma eutanásia digital com coma induzido no corpo real a simular a morte. Morria no digital, mas o corpo continuava em animação suspensa, ingerindo alimentos e defecando, mantendo-se o sistema inteiro em perfeito equilíbrio.

À medida que os anos passaram os pedidos de eutanásia foram-se acumulando. Primeiro milhares, depois milhões. Com a ausência de reprodução no digital, os humanos, por vontade própria, foram-se se matando por não aguentarem o simples facto de terem que existir. Afinal, descobriu-se, para a maior parte das pessoas o que dava verdadeiro valor às suas vidas era o facto de morrerem, imagine-se a estupidez das criaturas.

Em dois mil quatrocentos e oitenta e sete sobrávamos quarenta e oito mil trezentas e vinte e duas pessoas vivas no mundo. A maior parte de nós éramos estudantes. Apenas ávidos leitores, percebe-se agora, foram capazes de entreter-se na eternidade. Cursos atrás de cursos, debates, conferências, apenas isso permitia ocupar o tempo. Alguns artistas também: pintores, escultores, poetas que cantavam as desgraças da vida ao invés das da morte. E muitos cientistas: físicos, químicos, matemáticos e demais carolas capazes de gastar anos a matutar nos mesmos problemas. Robôs especiais no mundo real que agiam em função das ordens proferidas pelos cientistas habitantes do mundo digital permitiam experiências reais e que a ciência fosse avançando. Isso foi fundamental para que se criasse uma rede de satélites armados com mísseis nucleares que, já por duas vezes, salvaram as Terras, quer a verdadeira quer a virtual, da aniquilação global por força de um embate de um meteorito. Agora, sim, a protecção é total.

Com essa ciência apareceu alguma inovação baseada em nano-propulsão atómica que permite viajar no espaço quase à velocidade da luz. Ora, isso gerou um debate importante sobre se deveríamos enviar exploradores espaciais para descobrir novos mundos. O entusiasmo não foi grande, afinal que haverá mais para descobrir para lá da eterna imortalidade? No entanto, na dúvida e perante a insistência de alguns humanos que guardavam ainda a curiosidade própria das crianças, a coisa lá se fez. Como cada viagem seria sempre muito longa decidiu-se recriar o sistema que tínhamos na Terra. A coisa foi mais fácil do que se imaginava: em cada nave espacial foram colocados alguns milhares de humanos reais comatosos: era forçoso garantir-se que o sistema de inteligência a bordo tinha uma sustentabilidade auto induzida permanente e imortal. A viagem pelo espaço poderia, afinal, durar centenas de milhares de anos. E a cada nave foi designado um comandante. Ofereci-me para ser um deles. Por que razão, perguntam vocês? Simples: não tinha mais nada que fazer.

Naturalmente, a ideia de navegar sozinho pelo espaço durante milhões de anos, longe demais para comunicar com as Terras, apareceu como aborrecida a toda a gente. Além disso, corria em paralelo uma dúvida sobre se os humanos reais comatosos seriam capazes de sozinhos manter o sistema em funcionamento sem que uma certa percentagem deles estivesse acordada no mundo digital. Foi aí que eu tive uma ideia boa e, atenção, fui mesmo eu que a tive e propus: e se criássemos um mundo digital idêntico ao da Terra em cada nave espacial? Melhor ainda, e se a cada um desses mundos fossemos reconectando digitalmente os eutanasiados comatosos que iam na nave, sem que estes se apercebessem da sua condição real, não lhes oferecendo também a dádiva da vida eterna, aquela que eles rejeitaram de livre e autónoma vontade, deixando-os viver e morrer à vontade para todo o sempre? Nasceriam digitalmente, viveriam as suas vidas no planeta Terra tal como tinham gostado de fazer e morreriam, como tinha sido o seu desejo, apenas para nascer de novo, e assim sucessivamente. A ideia resolvia todos os problemas e foi aceite com júbilo intenso. E uns anos depois partimos.

Ao fim de uns primeiros dias de viagem em que estive ocupado com minudências operacionais, ligado o piloto automático para os próximos vinte e cinco mil anos que é a duração da viagem até ao planeta que me foi atribuído, fiquei pronto para dar início ao processo de criação planetária digital. A tarefa foi complicada pois tive que fazer tudo desde o início, para além de garantir os pormenores que comporiam a minha Terra. Alguma leniência face à original me era permitida, no entanto, o que foi bom para entreter o meu espírito criativo. O processo era complexo pois que eu tinha que imergir no meu mundo digital, um mundo que ainda não estava criado, no vazio portanto, dissolvendo-me na escuridão, quase no limite da dissolução da minha personalidade, para que pela minha intenção neural se fosse criando a realidade digital à medida que eu a moldava à minha vontade pura.

Assim, no princípio criei os céus e a terra. A terra era sem forma e vazia; e havia trevas sobre a face do abismo, mas o meu espírito pairava sobre a face das águas. Disse: haja luz. E houve luz. Vi que a luz era boa; e separei entre a luz e as trevas. E chamei à luz dia, e às trevas noite. E foi a tarde e a manhã, o dia primeiro. 

E depois disse: haja um firmamento no meio das águas, e haja separação entre águas e águas. Fiz, pois, o firmamento, e separei as águas que estavam debaixo do firmamento das que estavam por cima do firmamento. E assim foi. Chamei ao firmamento céu. E foi a tarde e a manhã, o dia segundo.

E depois disse: ajuntem-se num só lugar as águas que estão debaixo do céu, e apareça o elemento seco. E assim foi. Chamei ao elemento seco terra, e ao ajuntamento das águas mares. E vi que isso era bom. E disse: produza a terra relva, ervas que dêem semente, e árvores frutíferas que, segundo as suas espécies, dêem fruto que tenha em si a sua semente, sobre a terra. E assim foi. A terra, pois, produziu relva, ervas que davam semente segundo as suas espécies, e árvores que davam fruto que tinha em si a sua semente, segundo as suas espécies. E vi que isso era bom. E foi a tarde e a manhã, o dia terceiro.

E depois disse: haja luzes no firmamento do céu, para fazerem separação entre o dia e a noite; sejam elas para sinais e para estações, e para dias e anos; e sirvam de luzes no firmamento do céu, para alumiar a terra. E assim foi. Fiz, pois, as duas grandes luzes: a luz maior para governar o dia, e a luz menor para governar a noite; fiz também as estrelas. E pu-los no firmamento do céu para alumiar a terra, para governar o dia e a noite, e para fazer separação entre a luz e as trevas. E vi que isso era bom. E foi a tarde e a manhã, o dia quarto.

E depois disse: produzam as águas cardumes de seres viventes; e voem as aves acima da terra no firmamento do céu. Criei, pois, os monstros marinhos, e todos os seres viventes que se arrastavam, os quais as águas produziram abundantemente segundo as suas espécies; e toda ave que voa, segundo a sua espécie. E vi que isso era bom. Então abençoei-os, dizendo: Frutificai e multiplicai-vos, e enchei as águas dos mares; e multipliquem-se as aves sobre a terra. E foi a tarde e a manhã, o dia quinto.

E depois disse: Produza a terra seres viventes segundo as suas espécies: animais domésticos, répteis, e animais selvagens segundo as suas espécies. E assim foi. Fiz, pois, os animais selvagens segundo as suas espécies, e os animais domésticos segundo as suas espécies, e todos os répteis da terra segundo as suas espécies. E vi que isso era bom. 

E depois disse: faço o homem à minha imagem, conforme a nossa semelhança; domine ele sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu, sobre os animais domésticos, e sobre toda a terra, e sobre todo réptil que se arrasta sobre a terra. Criei, pois, o homem à minha imagem; homem e mulher os criei. Então abençoei-os e disse-lhes: frutificai e multiplicai-vos; enchei a terra e sujeitai-a; dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu e sobre todos os animais que se arrastam sobre a terra. Disse-lhes mais: Eis que vos tenho dado todas as ervas que produzem semente, as quais se acham sobre a face de toda a terra, bem como todas as árvores em que há fruto que dê semente ser-vos-ão para mantimento. E a todos os animais da terra, a todas as aves do céu e a todo ser vivente que se arrasta sobre a terra, tenho dado todas as ervas verdes como mantimento. E assim foi. E vi tudo quanto fizera, e eis que era muito bom. E foi a tarde e a manhã, o dia sexto.

Assim foram acabados os céus e a terra, com toda a sua multitude. Ora, havendo completado no dia sétimo a obra que tinha feito, descansei nesse dia de toda a obra que fizera. Abençoei o sétimo dia, e o santifiquei; porque nele descansei de toda a obra que criara e fizera.

Foi uma experiência intensa, esta a da criação. Optei por criar um mundo à imagem do daquele em que me lembro de ter nascido. E lá me vou entretendo com as vidas e mortes dos meus humanos, de quem tenho que cuidar. Normalmente, não intervenho, apesar de o poder fazer, porque não quero que saibam de mim. As vidas deles, sabem?, são mais interessantes, porque trágicas, quando se enchem de certezas sobre tudo aquilo que acham que sabem. Aí é o melhor momento e, não invariavelmente, não consigo parar de rir, por vezes à gargalhada! Mal imaginam eles a verdade . . .

Ando lá pelo meio deles, sempre disfarçado, e vou vendo o que se passa, o que fazem e não fazem, como se tratam e destratam. Ao fim de uns tempos, comecei a conhecer os bons e os maus e a cada vida nova vou dando melhor ou pior sorte consoante os feitos das vidas anteriores. Até fiz um sistema de pontos, sabem? Enfim, há que ocupar o tempo. Afinal vinte cinco mil anos não passam assim a correr. Além do mais, terei que acordar uns quantos para popularem o mundo novo. Apenas os melhores serão escolhidos, claro está.

É curioso, no entanto. Tanto controlo, tanta segurança, tanto trabalho que tivemos para criar o paraíso e, depois de tudo, afinal, a única coisa que me anima e dá vontade é o desconhecido que espera por mim no final da viagem. Um dia, lá chegaremos.